As relações humanas e o Inferno das boas intenções.


Numa repartição pardacenta e deprimente, onde o direito à privacidade soa como uma antinomia de serviço público, ouvia-se as vozes de autoritarismo  prepotente para quem a função é uma miríada de pequenos poderes exercidas sobre os outros tristemente dependentes e geralmente submissos as esses déspotas de pacotilha.

“O senhor não cumpriu, beneficiou com esta medida para afinal, não cumprir a sua parte. Se fosse a si eu faria … bem ter que fazer mesmo  porque senão, eu vou ter que..”




Cá estamos nós perante um dos muitos funcionários públicos a oscilar entre o papel de salvador ou de carrasco  que colocam o sujeito num lugar infantilizante e de dependência irresponsável, sem nunca lhe perguntar quais são realmente as suas escolhas e aspirações.

O nosso salvador age sempre com as melhores das intenções. Está convencido que deve absolutamente fazer alguma coisa para salvar aquele indivíduo mesmo se tal individuo nada lhe pediu. 
Tem tendência a pensar que o mundo e as pessoas à sua volta não podem funcionar sem os seus préstimos porque claro é o mais competente, o mais responsável, o mais capaz de tomar as decisões certas quer para a vida dele quer para a vida dos que o rodeiam.

E o que é bom para ele, também é forçosamente bom para os outros.

Manipula para que o outro reconheça o seu valor, ameaça, seduz, o importante é impor-se a todo custo. Não percebe quanto é perniciosa a violência que exerce sobre os outros que culpabiliza quando recusam submeter-se à ditadura da sua salvação.

Nas famílias, tais dinâmicas são muito vulgares, entre pais para filhos, entre marido e mulher, entre irmãos. Já ouviram sem dúvida…
- Depois de tudo que fiz para ti... e é assim que tu me agradeces…
- Tive tanto trabalho, porque pensei que era bom para ti e agora não ligas nada….

Esses benfeitores podem assumir o papel da Cruella de Vil, ditatorial que ordena, manipula, humilha, desvaloriza, culpabiliza para fazer ajoelhar o seu interlocutor, amedrontado, numa posição de inferioridade e dependência, como num momento posterior, transformar-se em Zorro salvador cheio de altruísmo e generosidade, sempre atentos aos desvalidos e oprimidos. 
Cheio de boas intenções deve ajudar, posicionando-se em justiceiro, protector, perito, conselheiro, ombro amigo inclusive para aquele que nada lhe pediu.

Não percebe o desconforto de quem não aceita esse papel infantilizante, interpretando o nosso Zorro salvador qualquer recusa ou evitamento como uma falta de reconhecimento, podendo transformar-se então no Zorro Vingador.

Uma variação também comum, é o conhecido Calimero em que nada do que lhe acontece é justo ou da sua responsabilidade, o outro é que persecuta com a sua falta de compreensão e as suas exigências.

Sente-se constantemente agredido pelas circunstâncias ou pelas pessoas  e como ser impotente, deixa-se orientar, manipular sem nada dizer ou dizendo as coisas de forma indirecta, mas vivendo na dependência do reconhecimento do seu Salvador.
- Bem me posso esforçar, mas os louros vão sempre para os mesmos… 
- Já sabia aqui há filhos e enteados… 

São muitos os momentos em que assumimos o papel de vítima ou de carrasco dos outros e  de nós próprios. 

Não é fácil parar de jogar a este jogo, mesmo quando provoca demasiado sofrimento para o próprio e para as pessoas que o rodeiam.

Não deixa de ser um desafio enriquecedor deixar de olhar para o mundo e para os outros com a lente binária, do justo/ injusto, do certo/errado, bom/mau e outras tantas dicotomias limitadoras de realidades muito mais diversificadas.

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