Justina e as crianças mal entendidas


Justina e as crianças mal-entendidas


Era uma vez uma juíza com um nome predestinado, chamava-se Justina.
Já não era nova, nem era muito velha, embora de longe, à custa de enérgicas caminhadas e de muitos cremes, mantivesse um corpo e um rosto de jovem.
Com os anos, Justina ficava cada vez mais pensativa e e cada vez mais preferia ouvir cada vez mais as pessoas em vez de sentenciar e julgar. Ao longo dos anos, as suas diligências demoravam cada vez mais e sabia que tinha ganho fama de ser vagarosa. Mas também era do seu gabinete que as pessoas saiam menos tristes e um pouco menos zangadas e por isso Justina sentia-se cada vez mais útil.

Nos últimos anos, Justina estava a trabalhar num Tribunal de Família e Menores. Era ainda assim que se designava tal como quando tinha sido criado, há mais de meia século num tempo em que a família, tal como tinham vivido os seus pais, prevalecia enquanto valor sobre os tais menores. Era de família porque naquela época só era reconhecido um tipo de família monocórdio convencional totalitária e nem sequer se vislumbrava o reconhecimento da diversidade das famílias possíveis; era menor porque prevalecia a incapacidade, a irresponsabilidade da infância e a submissão à ordem familiar.
Agora os menores, entidade cada vez mais rara num país envelhecido, já tinham acedido ao estatuto de criança e jovem e tinham sido colocados, pelo superior interesse que lhes atribuíam os adultos, no centro de guerras que não lhes pertenciam.
Via desfilar cada vez mais os pais destas crianças que vinham gladiar escudados na arena dos tribunais por trás da vontade dos filhos, deixavam Justina preocupada. Tinha cada vez mais dúvidas se a ouvir as crianças afinal não servia mais o interesse dos pais do que os dos filhos.
Percebia nos petizes que se sentavam à sua frente, as angústias provocadas pelo peso das palavras, o dizer sem dizer muito para não prejudicar nem o pai nem a mãe, emaranhados em as lealdades, as alianças, as inseguranças, a culpabilidade porque colocados perante uma escolha impossível.
Hoje tinha ali à sua frente, tal como a lei mandava, o João Gabriel, de 12 anos, que os pais entre acusações, provas, perícias, direitos e deveres se disputavam, tal como continuavam a quezilar, pela casa, pelo dinheiro e qualquer outra coisa que os encurralasse mais no ressentimento e rancor. O seu desamor era muito mais intenso do que a união pardacenta e sem paixão de mais de quinze anos
Justina já tinha ouvido duas pessoas infelizes e agora tinha à sua frente uma criança triste e ansiosa. Nem sempre as outras crianças tinham um olhar tão cheio de tristeza, geralmente optavam por se esconder por trás das palavras dos adultos com que viviam amordaçadas no seu querer dizer pelo medo e receios de entristecer o pai ou a mãe.
João Gabriel tinha o olhar triste, mas como um soldadinho valoroso, retinha as lágrimas e aguardava e torcia os dedos e ritmava com a perna a turbulência da sua ansiedade. Justina esperava encontrar a palavra certa para o deixar um pouco menos triste….
-“Parece que te deixa triste e nervoso teres vindo aqui…o que é que poderia acontecer para ficares menos triste?
Olhando num acto de bravura Justina nos olhos, João Gabriel respondeu hesitante: « ….o que poderia acontecer era o tempo passar mais depressa para eu  ficar mais velho para poder fazer o que quero e não estar aqui…
Não quero estar aqui, não quero falar do meu pai, nem da minha mãe porque não posso falar do meu pai à minha mãe, nem da minha mãe ao meu pai. Eles fizeram o que quiseram e até está bem assim, ouço menos barulho, agora têm que resolver….mas eu só não quero estar aqui…
Justina pensava que por mais quezilentos e desajeitados que tivessem sido aqueles pais, tinham conseguido transmitir ao filho a liberdade de pensar por ele e dos responsabilizar enquanto pais pela procura de soluções decorrentes de um projecto de divórcio que afinal era apenas deles.
Justina pensava que João Gabriel estava certo. Já que os pais tinham sido responsáveis a 100% do problema também tinham que se responsabilizar a 100% da solução e reorganizar as suas vidas para continuar a ser pais.
Afinal ambos talvez estivessem à espera que aquela criança soluciona-se um pouco da infelicidade em que tinham mergulhado. Eram desajeitados e não sabiam com sair dali, também era por isso que recorriam ao tribunal. Afinal há poucos serviços a quem recorrer para ajudar a ser pais, para comunicar, para gerir o luto de uma relação, para se reconstruir para além das divergências. Tinha tentado remeter-lhos para a mediação para ver se comunicavam para além dos gritos, dos silêncios, das alegações e das contra-alegações.
Pensava que com a mediação podiam ser menos requerentes e requeridos e um pouco mais pais preocupados em encontrar soluções para preservar o bem estar do João Gabriel para ele continuar a querer ser durante mais alguns anos uma criança despreocupada e feliz.
Justina ao final do dia também pensava que o tempo deveria passar mais depressa, para deixar de ver crianças nos tribunais.
Talvez um dia a sociedade proporcionaria para estes pais espaços para os ajudar enquanto pais na partilha das responsabilidades e afectos, para os ajudar enquanto casal a desunirem-se sem mágoas, sem gritos, sem guerras judiciais para que os filhos pudessem continuar apenas a ser filhos e os pais se responsabilizassem a ser pais.

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