O Bom e Mau juiz

Sou mais viajante  do que turista, gosto dos lugares que convidam à reflexão, à cultura, à lentidão. Gosto de lugares que nos interrogam, que nos obrigam a pousar-nos no tempo.
Não é necessário ir para além fronteiras para qualquer ilha distante para usufruir deste luxo que nos permite afastar-nos desta lufa lufa da informatização, industrialização, consumismo, do rebuliço da (des) informação desenfreada sobre tudo e mais alguma coisa.
A complexidade das sociedades e da inventividade humana é difícil de acompanhar e os momentos de distanciamento, o reencontro com o silêncio são essenciais para preservar algum espaço de reflexão interna e reencontrarmo-nos face às nossas apreensões, aspirações nesta sociedade sempre em movimento.
Neste mundo em constante mudança, há dilemas antigos que atravessam os séculos e que permanecem inalterados, subsistindo nas danças profundas de transformação das sociedades. Foi o que me suscitou a descoberta do fresco sobre a alegoria da justiça do Juiz bom e do Juiz Mau no Museu dos Frescos Monsaraz
O artista, corajosamente, porque era preciso muita coragem para se envolver em qualquer ousadia no século XV que era paga com a própria vida, questionava o que hoje em dia é comum nas redes de comunicação, as práticas de corrupção que desprestigiam o exercício da justiça.
Bem para além dos pensamentos binários de bom e mau que são sempre redutores, como em qualquer profissão deve haver melhores e piores. E talvez haja juízes, que nassuas vulnerabilidades humanas com dúvidas e angústias pessoais, em certos momentos exerçam melhor e noutros dias de forma pior a sua profissão.
O bom juiz no cinema, na literatura é geralmente um justiceiro corajoso, criticado pelos pares e pela própria hierarquia representada como servil face aos poderes instituídos. O bom juiz é um juiz atípico, austero, muitas vezes viúvo ou solteiro, um homem solitário quer na vida pessoal quer na esfera profissional. É geralmente um homem (há poucas mulheres na ficção contrariamente ao observado empiricamente na realidade) que está só contra todos como qualquer herói justiceiro que não se deixa seduzir nem por prestígios sociais ou políticos nem, tal como no fresco, por mais-valia financeiras.
O bom juiz afinal, tal como o artista do fresco é um homem revoltado (no sentido de Albert Camus) contra as ideologias, os dogmas, as certezas, a moral vigente. É apresentado como um ser excepcional no mundo em que se move, defensor intransigente de uma justiça intemporal e idealizada exercida em prole da defesa dos desclassificados e oprimidos.
Alguns filmes relatam a visão romanceada de alguns juízes fora do comum, mártires de um ideal, como o Juiz Pierre Michel, assassinado em 1981 pela máfia marselhesa ou como o juiz Giovanni Falcone que também pagou com a vida a sua luta por denunciar a promiscuidade entre a máfia e o estado italiano.
Na ficção, o bom juiz desempenha a função do contrapoder do poder judiciário que apenas tem legitimidade pela autoridade interna que lhe confere a administração judicial.
Apesar da evolução da sociedade, de uma justiça de maior proximidade, a ficção continua a impor essa imagem caricatural, pouco vulgar nos corredores dos palácios da justiça.  Pois a justiça, embora de maior proximidade, continua a ser exercida em palácios que muitas vezes se assemelham aos castelos de Kafka no qual o comum dos mortais fica desorientado e esmagado por uma construção que confunde a racionalidade e o pensamento.
Nos palácios, nas representações caricaturais vivem os ricos, os poderosos que vivem de mordomias e cujo único trabalho é alimentar a sua vaidade e preservar as suas regalias. É a caricatura do “ mau juiz”, do fresco mas também  do conto africano de Blaise Cendrars e do infeliz alfaiate que vê o fruto do seu trabalho danificado pelos buracos encontrados nos fatos e que atribui tal culpa, sem qualquer dúvida ao rato que na escalada das atribuições de culpa transfere a responsabilidade para o gato que acusa o cão… Cansado, o alfaiate recorre ao juiz, um babuíno preguiçoso que interrompido na sua sesta apenas aspira a retomar a sua tranquilidade, expedindo o mais rapidamente possível o julgamento.
O mau juiz afinal de forma caricatural está apenas preocupado em preservar o seu conforto e a sua tranquilidade em detrimento do exercício ponderado e exemplar  da justiça. A alegoria também nos remete para uma reflexão sobre questões entre a moral e ética, sobre a prevalência de uma atuação centrada no pensamento reflexivo e critico ou um modo de pensar e de actuar limitado pela moral e as ideologias.
O primeiro incentiva à desconstrução e à projeção para um modo de funcionamento mais ético e centrado nas reais necessidades das pessoas, o segundo  para a  permanência e para a estagnação.
Felizmente o mau juiz é, ouso pensar, uma caricatura com os dias contados, embora ainda me tenha ocasionalmente cruzado com alguns, tantos bons como maus.
É difícil ser bom, mas também é cada vez mais complicado ser mau juiz numa sociedade civil mais atenta e exigente, complexa e vigilante que obriga o exercício de qualquer função a uma formação contínua e que exige que o poder de decisão, humildemente se fundamente  em conhecimentos transdisciplinares e assessorias diversas.
Contrariamente à imagem veiculada pela ideologia do bom juiz, afinal não é a justiça que muda o mundomas sim as pessoas.

São as pessoas e as evoluções societais  que transformam a justiça, as instituições, os poderes instituídos e abalam as iniquidades, as representações binárias e restritivas que atravessam os séculos, os anos e a inércia que limitam as representações que sustentam o nosso pensamento e as nossas vidas.

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